Não se engane pelaampla grade: o motor é traseiro (Sergio Berezovsky/Quatro Rodas)
Nascido em 24 de fevereiro de 1931 e falecido nesta quarta-feira (29), Nelson Fernandes foi uma espécie de Preston Tucker brasileiro. Com ótimo tino empreendedor, nos anos 1950 ajudou a construir o clube de campo Acre e o Hospital Presidente, ambos em São Paulo capital.
Os dois empreendimentos foram erguidos através de um sistema de venda de ações que, na prática, financiou sua construção. É algo que seria adotado anos mais tarde pela Gurgel e que atualmente, de modo um tanto hermético, é praticado pela americana Tesla.
Se com o hospital e o clube havia dado certo, Fernandes acreditava que seria possível fazer algo parecido com uma fabricante de automóveis.
Uma das últimas imagens de Nelson Fernades (Acervo pessoal/Internet)
Seu sonho era gestar o primeiro automóvel 100% concebido, projetado, desenvolvido e produzido no Brasil em larga escala. E foi com isso em mente que fundou, em 1963, a Ibap (Indústria Brasileira de Automóveis Presidente).
Suas metas não eram nada modestas: até 1968, lançar ao menos três modelos (um veículo urbano com motor de até 500 cm³, um utilitário e um automóvel de luxo, nesta ordem) e operar uma fábrica capaz de produzir 350 veículos/dia, mesmo patamar alcançado pela Volkswagen na época.
O financiamento do projeto se daria, assim como ocorrera com o clube e o hospital, pela venda de títulos de participação na sociedade da Ibap.
Fernandes mirava no exemplo específico do Hospital Presidente, que fora erguido e se mantinha em operação de maneira sólida com mais de 70.000 associados. Por isso, ao todo, foram disponibilizadas 87.000 cotas da Ibap, todas vendidas num período de 30 meses.
Eis o primeiro protótipo do Democrata. Slogan enfatizava o caráter nacionalista do projeto (Acervo pessoal/Internet)
Além da participação nos dividendos, os acionistas teriam direito a comprar os carros da empresa pelo preço de custo mais 20%. Até os 120 funcionários contratados inicialmente pela empresa eram sócios. Tudo parecia muito promissor.
Mas construir um automóvel do zero nunca foi fácil, ainda mais no Brasil, e Nelson Fernandes descobriu isso a duras penas ao longo dos anos seguintes.
Primeiro, por questões de custos produtivos, o empresário teve de inverter a ordem de lançamento dos produtos, iniciando justamente pelo mais caro de todos, o cupê grande de luxo.
Nascia o Democrata, que já foi dissecado por QUATRO RODAS.
Democrata tinha linhas inspiradas em sedãs europeus e muscles americanos (Acervo/Quatro Rodas)
Cinco protótipos e outras tantas carcaças do modelo foram confeccionados em um galpão no bairro do Tucuruvi, zona norte de São Paulo (SP), e começaram a ser exibidos pelo Brasil.
Para demonstrar a robustez e resistência do projeto durante, representantes da Ibap chegavam a pedir que os potenciais investidores tentassem destruir unidades do Democrata com canos de ferro. Qualquer semelhança com a apresentação da Tesla Cybertruck é mera coincidência. Ou não.
Usando chassis de Chevrolet Corvair (incluindo o motor seis-cilindros opostos, na primeira fase de protótipos, embora a promessa era de que o veículo definitivo abrigasse sob o cofre um V6), o Democrata era confeccionado em fibra de vidro e trazia visual com claras inspirações nos muscles americanos.
A similitude mais latente talvez seja a de suas linhas laterais com as do recém-lançado Ford Mustang.
Protótipo do Democrata em galpão na zona Norte de SP (Acervo pessoal/Internet)
O motor definitivo seria um V6 de 2,5 litros com bloco de alumínio e 60° de angulação projetado pela italiana Procosauton (Proggetazione Costruzione Auto Motori) a pedido da Ibap, capaz de render generosos 120 cv.
As suspensões usariam braços duplo-A no eixo dianteiro e semi-eixos oscilantes no traseiro. Os freios seriam a tambor nas quatro rodas.
O motor V6 de origem italiana do Ibap Democrata (Acervo/Quatro Rodas)
Se o projeto parecia ambicioso, na prática gerou enormes desconfianças por parte de fornecedores, imprensa – incluindo a própria QUATRO RODAS, que o chamou de “esse estranho Democrata” em 1966 – e demais fabricantes atuantes no país. Não só a confiabilidade do projeto era questionada, como também a capacidade da empresa de cumprir suas promessas.
Mas o pior de tudo foi adquirir a antipatia de ninguém menos que o governo militar.
A dura reportagem de QUATRO RODAS de 1966 sobre o Democrata, mostrando o terreno onde seria erguida a fábrica de São Bernardo (Acervo/Quatro Rodas)
Embora Nelson Fernandes tenha pessoalmente apresentado o Democrata a generais do alto escalão do comando do país em 1964, tanto o Congresso brasileiro (que ainda não fora dissolvido) quanto órgãos ligados ao poder Executivo contribuíram para tornar muito mais difícil a jornada da Ibap.
Por exemplo, a fabricante foi alvo de uma CPI em 1965 porque suas ações eram vendidas por empresa de razão social N.Fernandes, a mesma usada por um dos braços do grupo que controlava a Vemag.
Nelson Fernandes ao lado de uma das partes das carrocerias incompletas do Democrata (Acervo/Internet)
Muitos compradores e até representantes de venda da empresa se confundiram com os homônimos e acabaram negociando títulos como se fossem da Vemag.
O caso foi parar em análise na Câmara de Deputados e, lá, a Ibap foi acusada de má-fé por apresentar um plano que ela jamais poderia cumprir a fim de cooptar investidores.
Segundo um laudo encomendado pela CPI na época, para ser viável, um Democrata deveria custar três vezes o preço que a Ibap estava efetivamente anunciando para seu lançamento.
O painel original do protótipo do Democrata (Acervo/Quatro Rodas)
A companhia também foi acusada de jamais cotar ou negociar com fabricantes de autopeças locais para produção em larga escala.
Para piorar, um lote cheio de motores e outros componentes mecânicos encomendados da Itália foi barrado pela Receita Federal sob a alegação de contrabando. Por fim, a tentativa de comprar a também brasileira FNM foi barrada pelo Banco Central devido ás suspeitas de inidoneidade da Ibap.
Tudo dava errado, e Fernandes acreditava se tratar de um complô formado pelo lobby das fabricantes já operantes no país junto ao governo.
Ainda assim, com o dinheiro das ações vendidas o empresário comprou, em 1966, um terreno de mais de 1 milhão de metros quadrados em São Bernardo do Campo (SP), onde chegou a iniciar a construção de uma fábrica de 300.000 m².
As carcaças em fibra de vidro do Democrata (Acervo/Internet)
Porém, com tantos reveses mais dois processos judiciais, nem a resiliência de Nelson Fernandes foi suficiente para evitar o encerramento das atividades. Justamente em 1968, ano em que o empresário pretendia estar alcançando a VW em volume de produção.
E se a verdade é filha do tempo e não da autoridade, como já diria Francis Bacon, foi só com o passar dos anos que Fernandes passaria a ser considerado não um golpista de má-fé, mas alguém que tentou dar um passo muito maior do que suas pernas suportavam.
Nos anos 80, o espólio da Ibap foi vendido aos irmãos José Carlos e José Luiz Finardi, que até hoje possuem unidades inteiras preservadas e carrocerias soltas do Democrata.
Quanto a Nelson Fernandes, este passou a investir em cemitérios verticais. Faleceu de maneira discreta e, junto de si, enterrou parte do sonho de vermos operando de maneira pujante uma verdadeira marca brasileira de automóveis.